terça-feira, 28 de março de 2017

Das palavras portuguesas

Quis fazer uma lista das palavras e usos portugueses que mais me encantam. A primeira é calhar. Se calhar, pode ser uma boa. A segunda é ó pá. A terceira é saudade.
Saudade só poderia ter sentido por lá. Se calhar, ó pá, é culpa do Tejo.
Porque o Tejo, todos sabem, nasce lá na serra de Albarracín a mil quinhentos e noventa e três metros de altitude e serpenteia por outros mil para descansar no mar. O que ele foi ter lá, ninguém sabe. Desconfio apenas que dele, do seu estuário, muitas palavras novas devem ter surgido. Porque é um lugar de partida e no qual se espera a chegada. Lugar por onde se vai. O Tejo desce da serra espanhola e vem vindo até se abrir ao mar, empurrando as embarcações para além dele.
Para o que virá. O descanso do Tejo no estuário, metáfora da vida. Plena de chegadas e de partidas. Lugar em que, se calhar, nasceu a palavra saudade ó pá.

terça-feira, 4 de outubro de 2016

Do verbo amar

De todos, é o mais difícil de conjugar.
É que precisa do verbo ser.
Do ter, não.
Do ser.
Só se conjuga o verbo amar depois do ser. E depois de se perder e não saber mais quem se é. Confuso?
Você primeiro tenta dizer Eu sou. Se não tiver nenhum problema com isso, comece tudo de novo, pois ainda estará longe.
Para amar é preciso deixar um pouco de ser. Ou melhor, se confundir com o que imaginava que você fosse.
Porque amar é desassossego.
É redemoinho.
É entrar num rio e aprender a nadar bem no meio da correnteza.
É um desassombro.
Para conjugar, então, esqueça o que você é porque o verbo amar vem da palavra transformar. É preciso sublimar, esquecer um pouco quem se é.
Porque amar é sempre uma oportunidade para recomeçar em vida.
Se você já não é aquilo que imaginava que fosse, pode ser algo melhor.
Então vamos lá: Eu fui.
Agora sim, já posso dizer Eu amo?
Pode, mas não sem antes encontrar as letras T e E.
E juntas.



quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Embarque

Um porto, um cais, um bilhete.
Uma vida, duas e uma vinda.
A ida.
A partida.
A espera pela saída.
A angústia bem vinda.
O sono que se atrapalha e tropeça.
E entre tudo isso uma janela.
Para ver o que fica e a gota da chuva tímida que escorre com o vento.
Para ver o que virá.
Todo cais é um ato preparatório para um abraço.




sexta-feira, 16 de setembro de 2016

As mãos

Foi a sua mão na minha,
apenas isso.
Ou tudo isso.
Percebi que podia andar assim, com as mãos juntas. Andar pela praia, pela ladeira, em busca do sol que ia embora. Que poderia andar pela vida.
A descoberta foi tanta que no outro dia me perdi.
No outro, também.
Depois fiquei sem saber como andar de novo. Sem a sua mão na minha.
Até que elas se encaixaram de novo.
Apenas isso.
Ou tudo isso.


sexta-feira, 5 de agosto de 2016

A chuva

E tudo mais que há na terra, a chegada da chuva.
Ninguém sabe ao certo qual foi primeira gota que se estabacou, o que a gente lembra é do primeiro trovão e daquela gotinha que tocou a nossa pele.
O barulho do trovão e o toque na pele.
O toque que provoca um ligeiro arrepio.
O trovão que parece entrar coração a dentro alterando os batimentos.
A chuva chegou e eram dez horas.
Esperar pela chuva é quase tão bom quanto viver a sua chegada.
É que a chegada é a soma multiplicada das preces oferecidas ao céu para que ele, em água desabe.
Para que os sulcos da terra deixem de sangrar e faça brotar a flor.
E os lábios rachados pela seca, com o beijo da chuva se lambuzem de molhado.
E tudo mais que havia na terra, virou chuva.
Enxurrada.
Corredeiras.
Com barquinhos de papel soltos pelas crianças.


segunda-feira, 11 de julho de 2016

Saudade

Na Europa e África é uma flor de nome scabiosia maritima.
No mar é um canção de marinheiro.
Canção para que chegue logo ou música para não esquecer de algo.
A saudade é uma das palavras mais bonitas, mas pode ser suspiro também.
É aquele último pensamento antes de dormir.
É o lugar em que a gente vai para ter um sorriso de canto de rosto.
É um localizador.
Um barulho de zíper na mala.
Um chamado na fila do embarque.
Pode ser, também, um "tripulação, preparar para o pouso".
É aquele estouro de boiada para pegar a mala no corredor.
É um bilhete de ida.
Saudade é o abraço e o beijo na chegada.
O abraço sem fim da despedida.
Saudade é flor depois do oceano, canto no meio dele e um abraço.
São exatos 1.175, 09 quilômetros.
Saudade é aquilo precede, acompanha e se deixa aqui, bem no cantinho do pulmão.
Alguns dizem ser coração, outros arritmia.
Uns dizem inspiração e expiração, mas está mais para suspiro.






segunda-feira, 18 de abril de 2016

Andorinhas

A gente vive, sente e tenta entender.
O correr da vida mistura, embrulha e bate tudo isso na máquina de lavar.
E a vida, mais do que entendida precisa mesmo é ser sentida.
A que vale a pena de ser vivida é que a gente sente.
Por que sentir é melhor que tentar entender.
Aliás, quando você sente, dispensa compreensão.
É o momento de ver andorinhas na sacada.
Daquela despedida indesejada.
Do cheiro da pessoa amada que fica na sua roupa.
Desejando a estrada do reencontro.
Por que o correr da vida mistura, embrulha e bate tudo.