quinta-feira, 16 de abril de 2015

Dom

Um dos dons que tenho é o dizer as coisas mais precisas quando elas já não tem validade alguma. Precisas e inválidas.
Um dia depois de ter a oportunidade para dizer, sou capaz de construir os diálogos mais brilhantes e encantadores. Na hora, troco as pessoas, os pronomes e canto em português errado.
Um dia deixei de dar um Yakult para a menina mais linda da escola. Eu era apaixonado por ela. Um dia depois, fui capaz de reconstruir a cena com uma perfeição que faria inveja à um cineasta. No meu set, tudo dava certo. A porra do Yakult não caia, nem eu fazia papel de ridículo e, ao final, a beijava. Quando estou na fila com senha mão, reconstruo a cena do Yakult. Ajuda a acelerar a hora de ser atendido.
Outro dom que me acompanha é o de criar cenas irreais. Uma vez achei que ela estava tão afim que era capaz de se jogar nos meus braços no baile, deixando na mesa antes o copo de san remy. Quando o diretor gritou gravando!, pimba, ela beijou o menino mais velho que já tinha jogado nos juvenis do Matsubara.
Eu conjugo o verbo amar e sai apaixonar no pretérito imperfeito, na terceira pessoa do singular.
Existe sempre um "se" entre os amores que escolho.
O se ela está na minha.
O se eu não estou a viajar.
E o se liga, mané!
Um dom que tem a ver com o do Yakult é o da brisa da percepção.
No colegial uma vizinha maravilhosa disse que eu me parecia com um ator da globo. Estávamos só os dois no sofá da sala. Era a hora, portanto, mais propícia para aquele beijo de fim de tarde. Ao invés de beijá-la, falei que uma outra mina por quem estava apaixonado havia dito a mesma coisa e que havia me escrito uma carta. 
A da carta nem estava mais na minha e, dias depois a vizinha começou a namorar. Soube posteriormente que ela ficou um tempão super dando sinais. Quando tive o insigth de procurá-la, já estava viajando com o namorado para um acampamento à beira do rio.
Tenho a sensação que meu dom de brisa da percepção é como uma antena daquelas que haviam nas casas e que você tinha sair lá fora para rodá-la a fim de melhor sintonizar o canal. Às vezes essa antena é minha única forma de comunicação e captação de ondas enquanto que a maioria já usa o 4G.
Um último dom é o de me apaixonar dizendo coisas imprecisas, misturadas com lactobacílios vivos, entrando de figurante em cenas irreais e fantásticas em um baile regado a san remy.
E a paixão é uma brisa de percepção enviada por imagens captadas por antenas retrôs que você deve girar, girar e girar para melhor sintonizar com a pessoa amada. Geralmente ela deve estar dentro da sala, com a TV ligada e você lá fora gritando: pegou bem? Quase! Aêêê, pegou, não espera, volta. E agora? Agora pegou, vem pra cá. 





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