quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

A novela de uma cidade esquecida

O dono da padaria roncava no exato momento em que o padeiro James Miranda Wittgenstein Lenon da Silva, de bicicleta, pedalava até a esquina da rua principal da cidade. O padeiro, foi o primeiro a saber da notícia que, dias depois transformaria, para sempre, a história do povoado de Não me Toque, interior da Bahia.
O nome James foi dado, pelo seu pai, em homenagem a um ex-jogador de futebol que atuou pelo time de Não me Toque e morreu de maneira trágica ao enroscar a perna em um mata burro na fazenda de seu Tié, rico proprietário de terras na região e avó do atual prefeito da cidade.
Por insistência de um tio, Wittgenstein Lenon foi acrescentado aos 46 do segundo tempo, já no balcão do cartório. Indagado o porque de um nome tão pomposo, disse que o nome foi um tributo ao filósofo alemão Jhon Lenon. De toda forma, ficou mesmo conhecido como James Lenon da padaria espanhola. Silva foi por parte de mãe, dona Iolanda.
Lenon, além de padeiro ainda dava aulas de kung fu na quadra de futebol da escola. Aprendeu lendo livros de Bruce Lee. Seu treinamento era baseado em barras de peso feitas com latas de tinta cheias de concreto batido e corridas no morro de São Pedro. Uma vez um aluno seu teve que ser levado ao hospital de Brejo Velho porque teve desidratação ao tentar completar o teste de subir o morro 20 vezes com 4 blusas,sendo uma de lã. Outro aluno passou mal ao tomar uma mistura de Biotônico Fontoura com limão e ovo de galinha.
Quando escorava a bicicleta na fachada da padaria para abrir a porta, percebeu que 5 pessoas da cidade não só haviam acordado antes que ele, como apressadamente colocavam malas na parte de trás do veículo. Em 10 anos neste trabalho isso nunca tinha acontecido. Sempre foi a primeira pessoa a acordar na cidade. Nem mesmo na madrugada em que o padre Severino caiu da janela da casa da Solange da boutique. Neste dia o padre ao perceber que James o havia visto, foi até a padaria de cuecas e sandália de couro. Pediu uma roupa emprestada e explicou que se tratava de um caso sério de exorcismo que havia se apoderado do corpo de Solange.
Esse segredo acabou por fazer do padeiro o nome mais citado pelo padre nos sermões. Em toda história que começava terminava sempre com o milagre da multiplicação dos pães. Nesta parte da homilia pedia para James se levantar e dava-lhe a honra de uma benção especial em suas mãos pois dela saia o milagre dos pães todas as manhãs em Não me Toque. Depois o puxava para a frente da fila que já se formava para tomar hóstia. Era sempre o primeiro.
Outras vantagens lhe rederam o exorcismo da dona Solange, como os frangos com farofa que sobravam da quermesse e as batatinhas fritas, sempre enviadas pelo coroinha à sua casa.
Ninguém na cidade entendia muito bem essa relação entre o padeiro e o padre Severino. As beatas morriam de ciúmes a acabaram pegando birra, mas como só havia uma padaria na cidade inteira tinham que continuar comprando lá.
Certa vez, duas delas foram falar com o dono da padaria espanhola, seu Clarindo, para pedir que o mandassem embora com o argumento de que esse Kung Fu era uma má influência para os jovens da cidade.
Seu Clarindo até pensou que fosse em razão de algum pão mais torradinho ou pela dia em que James chegara atrasado e a fornalha só saiu as oito e trinta. Quando soube que era por conta dos treinos de Bruce Lee desconversou dizendo que iria pensar e resolveria amanhã. Nunca mais tocaram no assunto, nem houve qualquer conversa com seu funcionário. Clarindo as tinha por doidas, desde o escândalo que certa noite há uns quatro anos atrás ocorreu na zona da cidade. Mas, isso e outra história. O que importa é que James Lenon não só soube quais pessoas estavam no carro, como que tinham ido embora da cidade por volta das quatro e meia da manhã.
Guardou a informação e foi repetir seu périplo de farinha, massa, dar liga, acender o fogo e esperar dar o ponto. 
Quando viu pela janela pequena no canto direito da fornalha que o dia já estava em marcha percebeu que já era de tirar o pão. Pela mesma janela, o cheiro da massa de trigo aquecido escapava por entre a calçada, era surrupiado pelo movimento do veículo do leite e subia. Depois se acomodava espalhando pelas casas das famílias que moravam perto da praça, aquelas mais ricas da cidade. Sempre se quer estar próximo do coreto, da Igreja. O primeiro porque se sabe de tudo o que ocorre e no segundo caso, pela esperança de estar mais próximo do paraíso, coisas de influência.
Assim que despejou os pãezinhos no cesto, tocou o sino para o ajudante do padeiro descesse para buscar o primeiro carregamento.
Nesta hora, os mesmos personagens de sempre estavam próximos ao balcão ávidos para pegar os primeiros exemplares. O primeiro que chegava era um ex-tenente do exército que, em Não me Toque recebeu a patente de coronel, outorgada pelo Zebrinha, a figura mais conhecida de toda cidade. José Manoel dos Santos dormia na rua ao lado de uma garrafa. As crianças todas só o conheciam pelo apelido e não sabiam que um dia havia sido casado e pai de família. Um ex-sócio teria sido o responsável por transformar José Manoel em Zebrinha. Contam que um golpe havia tirado todo seu patrimônio e, como se não bastasse isso, sua companheira Helena teria terminado o relacionamento em razão de seu ciúmes. Desconfiava que além do seu dinheiro o sócio teria, também, atingido o amor da sua vida. Sobre isso nunca se provou nada, invencionices da cabeça, fantasmas que nos rondam era o que parecia ser o caso. De toda forma, essa era a desgraça que se abateu sobre sua cabeça e pesou-lhe os ombros. A cabeça foi arrastada para o manguezal do desvario dos amores. Da antiga, nunca mais se teve notícias. Nunca mais falou coisa com coisa. Nada do que era lembrava o que havia sido. A pele tostada pelo sol o envelhecera, os cabelos sem água cresceram feito cipó e as roupas, trapos velhos carcomidos lhe davam um aspecto inusitado e meio profético porque nunca abandonara o paletó com o qual se casou e, como emagrecera, dobrou de tamanho, lembrando uma capa de rei das ruas e das sarjetas.
Os moleques de bicicleta, certo dia, descobriram que jogar pedrinhas não surtiam o efeito desejado e um deles resolveu assoviar para Zebrinha. Pronto, bastava isso para ele se desembestasse a correr atrás.
Toda saída de escola era a mesma cena. O ex- Zé Manoel deitado no banco da praça perto do coreto e um bando de alunos de uniforme assoviando. Era a alegria da criançada.
Entregue o primeiro pacote de pães ao coronel, vinha logo após como produção série dona Lia. Os ricos mandavam as empregadas, nunca iam pessoalmente buscar pão. Quando o relógio bateu sete horas da manhã, era o auge do movimento e até fila se formava. Tanto para pegar o pão, quanto para pagá-lo. O sol já engolia toda a cidade.
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