É tão improvável hoje em dia encontrar alguém assoviando pela rua, alguém a cantar uma melodia, todo mundo anda rápido demais para isso. É sair rumo ao banco, ao trabalho, entrar no ônibus, descer, pegar o ônibus de volta. Não se assovia mais, não temos tempo mais para isso.
E sabe que, quando se é criança, aprender tal arte é um desafio de dias e dias, muito ar se gasta para aprender soltar o primeiro, tem gente ainda que consegue com os dois dedos, eu mesmo só com os lábios.
Pois então, é muito improvável encontrar alguém assoviando ou cantando pela rua, mas foi o que Mel encontrou ao sair de casa depois de reencontrar os pais.
O encontro foi muito formal, ela foi desarmada, deixou na porta da entrada o alforje com dívidas históricas de anos de intolerância e incompreensão da sua família, mas havia esquecido de combinar com seu pai e sua mãe que, antes mesmo de abraçar a filha com câncer em estado terminal, soltaram cobranças de variadas matizes, desde o cabelo maltratado à calça jeans surrada, passando por questionamentos sobre no que andava trabalhando ultimamente.
Não comprou briga, não tinha forças para tanto, nem isso era coisa que valia à pena diante do enorme desafio pelo qual passava, despediu-se dos dois sem contar nada sobre a doença e sem dar conta do prato de janta em porcelana polonesa com o brasão da família Santis (coisa que ela achava breguíssimo).
Depois de despedir do jardineiro, pelas ruas aroborizadas saiu aliviada daquele encontro, agora poderia se dedicar às pessoas queridas, as que realmente interessavam para ela.
Pelo caminho, ficou anestesiada quando ouviu Bob Dylan na gaita, depois não conseguiu seguir no passo ao sentir no fundo da alma o toque de uma flauta magistralmente tocada.
Era Josué, um flautista inusitado que vivia, como ela, nas ruas, arrecadando moedas aqui e acolá, sem contudo perder a dignidade do grande artista que era.
Quem o via, não poderia imaginar que já havia tocado na orquestra Russa e em vários outros países do leste europeu.
Quem sorvia seus acordes, com sensibilidade saberia que ele tocava para alguém que ali não estava mais, mas que se fazia presente nos dedos e no sopro que ele, com delicadeza, soltava rua abaixo, rua acima.
Josué perdeu o irmão mais novo num acidente de carro, onde ele, irresponsavelmente dirigia, depois de muito beber após uma frustração amorosa.
Se a dor da perda do irmão ainda pendia sobre a moldura da sua vida, muito mais ele cantava e muito mais ele andava perdido, sem rumo pelas ruas da cidade, encantando uns e outros de mais humanindade e recebendo o desprezo daqueles que andam pelas ruas, sem se atentar para as flores de um Flamboyant, nem para o trabalho de artistas renegados pela grande mídia.
Assim, Sil ouviu uma, duas, seis, onze músicas, depois se sentou ao lado do flautista mágico e ficaram horas tricotando sobre a vida, sobre perdas e sobre música.
Naquele instante, esqueceu do diangóstico do seu médico, do encontro de gelo com os pais e sentiu no sopro da flauta, a brisa da vida a lhe tocar a face, recordando que ainda estava aqui, deixando o lá para bem longe, mesmo que o médico estar ele perto, contando seu fim em dias.
É assim, algumas pessoas medem o tempo com horas, outras com dia, outras com meses e outras com anos, mas em determinadas situações da vida isso de nada vale.
Pergunte a quem encontra o amor da vida se três meses, são três meses quando se ama?
Sil viu pelo som de um flautista que o tempo era dela e de ninguém mais.
Ela é quem o faria passar voando, ou com angústia de ampulheta entediante.
Josué a levou para casa, onde fizeram amor a noite toda até ficarem frouxos.
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