quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Tatuagem

Uma rosa.
Era o que se devia tatuar.
Tirou a roupa e sentiu, com os primeiros contornos do desenho, uma pequena dor.
A agulha atravessava sua pele e o vermelho do sangue se misturava ao das pétalas. Enquanto as suas cores se misturavam à da agulha, lembrava da última noite em que acendeu as velas no seu quarto.
Lembrou do lençol que deixou todo amassado. Ao retirar da cama no dia seguinte, percebeu que em um ponto ele estava mais que o outros. Foi ali que suas mãos espremeram insanamente o tecido de algodão no melhor momento da noite.
Ouvia a música do estúdio competindo com a música que tocava em seu android na noite das velas.
O barulho da máquina impiedosa competia.
A rosa ia brotando em sua pele aos poucos. Guardou duas pétalas daquela noite, dentro do Neruda. Já ressecadas, denunciavam que há tempos não gozava como daquela vez.
Na cabeça dele nada se passava, somente a tarefa de concluir o desenho.
Sequer reparou no corpo que tatuava. As curvas eram meros obstáculos à realização da arte.
E aquela pele e aqueles contornos belíssimos que ele, através da máquina perfurava, eram somente mais um do dia.
Incapaz de perceber que a maior e mais perfeita rosa não era aquela que desenhou, mas a que foi entregue em suas mãos compunha, sem querer, um monumento perfeito à alienação do trabalho.
Ela ainda tentou, com os olhos, fazer com que ele deixasse de lado o desenho, ainda que borrado ficasse e mergulhasse ali mesmo dentro do seu corpo.
Em vão, suas tentativas fracassadas somavam já inúmeras.
Era a última tentativa.
Quando ele acabou o desenho, ficou orgulhoso. Uma lágrima caiu dos olhos dela.
Ele achou que ela voltaria para casa, mas passaria antes na padaria.
Nunca mais ela voltou.
Deixou um último recado na pia do banheiro.
As pétalas do livro do Neruda, 300 reais e um bilhete escrito a mão.
"O dinheiro é pela sua mão obra, as pétalas para que você se lembre da noite em que fez a tatuagem mais bela de toda sua vida usando sua própria pele. Achei que hoje você me tatuaria de novo como daquela vez. Uma pena. Fique bem. Beijos".
Nunca mais a viu, passou um ano sem entender o que aconteceu.
Seus traços hoje são premiados mundo afora, mas nunca mais aceitou tatuar rosas ou flores. 

3 comentários:

Waldemar M. Reis disse...

"Quando ele acabou o desenho, ficou orgulhoso. Uma lágrima caiu dos olhos dela.
"Ele achou que ela voltaria para casa, mas passaria antes na padaria.
"Nunca mais ela voltou.
"Deixou um último recado na pia do banheiro.
"As pétalas do livro do Neruda, 300 reais e um bilhete escrito a mão."

Grande, Patrick, com especial ênfase no trecho acima, que conheci em seu perfil do fb e que, sem desmerecer em nada o conto, é de deslumbrante autonomia: é o conto ele mesmo e a mim diz tudo o que, leitor discreto, creio ser suficiente saber dos personagens.

Bravo.

Unknown disse...

obrigado!Um grande abraço!

Unknown disse...

obrigado!Um grande abraço